mas que para mim fazem toda a diferença.
Na semana passada, fui com a mais nova a uma consulta de rotina pediátrica ao Hospital de Évora. Lá saímos de casa as duas muito lampeiras, na certeza de que a dita consulta estaria à nossa espera para nos receber na porta de entrada. Cantámos e rimos os 37 kms que nos separam da capital do Distrito. Fizemos até planos! Quando sairmos vamos aqui, depois vamos ali, e com um bocadinho de jeito ainda vamos "acoli".
Mas não. Com tantos anos disto, tantos filhos, tantas marcações, já devia saber de cor e salteado que isto do sistema nacional de saúde não é exactamente assim como pensamos, ou, como eu, que sou ingénua e estúpida, penso.
Mal entrámos na ala de pediatria, logo demos de caras com as inovações, dispensador de senhas, ecran de chamada, e uma cambada de etcs que só tornaram o atendimento mais e mais moroso (vá-se lá entender esta gente...).
Adiante. Não foi nada de mais não senhor, foram três horas de dura espera. Três horas num crescendo de desespero.
A coisa começou com a habitual calma que antecede a tempestade. Fomos recebidas, como sempre, calorosamente "olá Boneca!", as enfermeiras ainda a mimam como quando ela era um bebé de colo (ao menos isso).
Passada a primeira hora, os "mas quando á que nos chamam?", ou os "ainda demora?", começavam a multiplicar-se como as ninhadas de coelhos, mas eu lá ia contrapondo com uns suaves "não tarda nada", ou "deve ser já a seguir, vai brincar meu amor".
Passada a segunda hora, a rapariga, depois de uma dezena de desenhos, depois de ter experimentado todas as brincadeiras (poucas diga-se de passagem) à disposição dos miúdos, depois de folhear uns quantos livros, estava total em completamente em queda livre, "eu quero ir-me embora", e "eu tou cheia de fome", ou ainda "voltamos amanhã!", sempre acompanhados de investidas à minha pessoa, rebolava-se nas minhas pernas, sentava-se no meu colo, fazia cavalinhos nas minhas pernas, escorregava até ao chão, amuava... Por esta altura o meu discurso era já mais contido, e sentia uma ponta de tensão nos dentes " está quietinha se faz favor", e "sossega por amor de Deus".
Duas horas e meia. Senti claramente o momento em que comecei a olhar para as pessoas com um ódio sentido. Não escapava vivalma. Crianças, passantes, esperantes, pessoal auxiliar. Apetecia-me encetar ali mesmo uma chacina, até à médica que seria a última, e por isso mesmo com requintes de crueldade. Indiferentes à minha vontade, os meus dentes rangiam. A gaiata amuava de braços trocados, às vezes ousava desafiar de mão na anca "mas isto é o quê!? eu quero ir comer, doí-me a barriga, tás a ouvir - a apontar para o estômago - tás??? a minha barriga está a rosnar, tou a morrer de fome!". Eu tinha optado pelo silêncio. Temia sequer abrir a boca e soltar a lava que fervilhava dentro da minha pessoa. Foi então que a sacaninha da rapariga, deu o golpe de misericórdia. Cansada, deixa-se cair pra cima de mim, assim, sem aviso, atenção que estamos a falar de um ser com mais de trinta kilos, e ouve-se um "crac".....o salto do sapato partido. No lugar do salto, apenas havia meia dúzia de pregos retorcidos pela força do embate. E agora! Dez centímetros a menos! Então sai uma pessoa de casa pra isto? Vem uma pessoa à cidade uma vez, pra isto?!!!
A pirralha, deve finalmente ter visto alguma coisa nos meus olhos que a amedrontou de uma maneira nova (ou então foi mesmo o facto de eu lhe ter dito "senta-te imediatamente, ou levo-te ali à casa de banho pra teres uma conversinha com as minhas mãos", e sentou-se. Quieta. Calada.
Três horas depois da nossa chegada, eis que, - Eugénia! - a médica. Entrámos, eu de cabeça erguida, a coxear, em bicos de pés. O salto do sapato na mão.
Não me lembro muito, bem, porque tenho a nítida noção de que tive uma branca, mas acho que nos primeiros dez minutos dentro do consultório, nada mais fiz que responder com acenos e hum huns às perguntas que me iam sendo feitas. Não podia arriscar muito. Uma palavra e a carnificina teria lugar ali, deitava-a na marquesa, e cortava-a em bocadinhos pequeninos com um daqueles pauzinhos pra ver as gargantas dos meninos, e saía feliz e contente banhada em sangue.
Devo dizer que a consulta demorou meia hora, a rapariga foi vista de cima a baixo com esmero e preceito, o que acalmou a minha ira.
Finalizadas as hostilidades. Lá saímos daquele lugar. O hall de entrada apinhado de olhos. E cá o je, de mão dada com a desgraçada da gaiata (sim àquela hora ainda me apetecia dá-la pra adopção), a mala na outra mão, em bicos de pés, queixo bem esticado ao estilo " estão a ver seus pelintras! Eu até só com um salto sou de uma elegância e distinção ímpar!!!".
Agora só já faltavam os dois km a pé até ao lugar onde o carro estava estacionado. No centro de Évora. Foi nesse momento que abençoei os anos a fio de teatro amador. Não foi em vão!
P.S.- Tinha mais coisas a dizer, mas uma amiga minha, um dia destes, disse-me " tu não maces as pessoas, conta uma coisa de cada vez, pá!" e eu achei que "tá bem, pronto, vou fazer isso".