"Ê fui cantonêro! Ah pois fui! Muntos anos! Corri seca e meca...o mê patrão era o Chefe da Estrada, conhece-o? Boa pessoa...tava sempre tudo bem pra ele, sempre...esta aqui? É da Granja. Faz versos!"
"Sou da Granja sim Senhora, sabe?, Todos os anos, no Entrudo, vinha aqui pra Mourão, morava cá mê tio, sabe? ele dizia a minha tia: Maria, tens que fazer arroz doce, que vem aí a nossa menina, que era eu percebe?, eu era a mais piquinina, era tudo pra mim, tanto q'eu gosto de arroz doce! Até me lembia! Em casa de minha mãe, não se fazia arroz doce...pois não...tinha-lhe morrido uma filha já grande...em Lisboa...sabe? até me puseram a menina dos versos! Escute:
Lindos brincos tem a moça, nas orelhas a abanar, quem me dera dar um bêjo, onde os brincos vão beijar"
"Fui toreiro! Agarrante! Olhe faz amanhã, dia da Candelária 37 anos quê peguei um mesmo à saída dos curros, na tourada da festa! Levei munta pancada, oh se levei, mas ouça, nunca me desmaginei disso eheheh ehh touro, eh touro!"
"Escute, menina, ê sou da Granja, sabe, no Entrudo vinha aqui pra casa de mê tio, faziam-me sempre arroz doce, Maria, vem ai a nossa menina! Ê até me lembia! Na minha casa não se fazia...."
E lá continua...só muda o sujeito, umas vezes morreu uma filha já grande em Lisboa, outras vezes uma irmã, outras vezes foi a mãe que morreu afogada na ribeira.
Tem sido um banho de realidade, meus amigos, mas não é assim um duche rápido que se toma ao fim da tarde pra esquecer o dia de trabalho e apagar o suor do corpo cansado, nada disso. É mesmo um banho demorado que nos cansa a alma nos acorda todos os sentidos, um banho frio como pedra.
Tenho muitas vezes nos últimos tempos encarado isto como um olhar do futuro.
Por motivos familiares, tenho passado muitas horas num lar para idosos, depois de mais de um ano de luta, de cerrar os dentes e não querer ver que o inevitável estava mesmo ali à minha frente, fui obrigada a ceder à força de muitas circunstâncias. Talvez não fique muito claro, neste texto, mas a dor, o incomodo, a culpa...são perturbadores, e quem sabe volte ao assunto quando a ferida estiver um pouco mais sarada. Tudo sara, esta não vai ser diferente.
As visitas diárias a um lugar destes, por muito bom que ele seja, são qualquer coisa para a qual ninguém pode estar preparado de ante-mão.
A visão do futuro, crua, como uma batida de frente.
O esquecimento, a decrepitude, os membros tolhidos pelas escleroses, artroses, avcs, Alzeihmers e afins; a vida toda impressa em dor e saudade nos olhos cansados, as bocas abertas num espanto mudo, a coluna dobrada, bengalas, andarilhos, pés que se arrastam numa sinfonia de pó-de-talco, e fraldas e urina e desinfectantes...
Porque somos jovens, ainda, tudo isto é exactamente aquilo que não queremos ver, que fingimos não existir sequer, porque estamos longe, tão longe que é impossível aceitar aquilo como uma realidade que nos espera. Nada nos trai os sonhos, a juventude ou a vaidade.
Todos os dias as mesmas histórias, repetidas no mesmo tom de quem tem ainda coisas para dizer, apenas nem sempre tem quem queira ouvir. Todas as tardes as mesmas apresentações de ontem, quem são, como se chamam, de onde vêm. A vida que se esvai, e ainda assim teima em renascer a cada palavra dita.
Já sei os versos de cor e salteado, já conheço o patrão, as sortes das faenas dos touros, os filhos, os tios, o arroz doce...
Estas pessoas entraram na minha vida, quase todos os dias eu e a minha irmã, falamos deles, rimo-nos com as repetições. Claro que nos rimos, seria hipócrita dizer que se resiste! Claro que não! A frase "até me lembia!" entrou definitivamente no vocabulário familiar, e acompanhamos com efervescência o namorico entre um casalinho de octogenários, que partilham maçãs e laranjas pilhadas à socapa da mesa do almoço, e que provavelmente todos os dias se apaixonam um pelo outro...à primeira vista.
"Já vi chover e estar sol, já vi luar e estar escuro, vi tirar um bem-querer, onde estava tão seguro"
20 comentários:
Triste realidade a dos Lares de Terceira Idade.
Muito bom o teu testemunho.
Ah minha malvada que já me meteste a lacrimejar. :(
Um beijinho grande pra ti, e um abraço para o teu pai. Diz-lhe que é de uma maluca da zona centro, que um dia inda há-de conheceri o Alentejo de lés a lés.
E espero ser recebida com uma valente travessa de arroz doce... daquele que até faz uma pessoa se lamber! Oubistes?
Mel
Infelizmente, esta é uma realidade que tendemos a esquecer enquanto não nos bate à porta!
Bjs e coragem!
enxamalhice gira. :-)
Mel esta é a realidade de muitos idosos. Infelizmente muitos filhos têm que pôr os pais num lar como põem os filhos numa creche. Infelizmente não há tempo para cuidarmos de quem amamos, porque temos que trabalhar e trabalhar. Não é fácil ouvir a toda a hora a mesma história, quase de minuto a minuto. Não é preciso ser-se muito idoso para se nos começarmos a repetir. Parece que se pára de viver, que deixa de haver presente e o passado começa a governar. Todas as histórias têm muitos anos mas, para eles, aconteceram agora. Mel custa muito ver envelhecer mas sei que mais custará sentirmo-nos envelhecer. Aliás, começa a custar sentir que já se perdeu alguma visão e que os ossos começam a queixar-se. Espero que todos tenham a velhice que merecem mas, sei que isso é uma utopia, muitos deles mereciam estar na casa deles mas, é impossível. Adorei esta tua transcrição da realidade com acento alentejano. Beijinho Grande
Boa noite,
esta realidade tocou-me muito de perto. A lança de que falas atingiu-me bem no meio do peito.
Tenho os meus pais num lar de idosos, porque ambos foram vitimas do infortunio e agrrados por vários AVC(s).
Como filho único, faço o que posso e o que não posso... mas a vida segue o seu rumo.
Beijo com emoção
A minha realidade actual levou-me a visitar varios lares de idosos. E mais que o confronto com as historias idividuais, a decrepitude do corpo, os cheiros, chocou-me a ampla percentagem de propietarios que vê a velhice como "business as usual".
Sou filho unico e não tenho filhos.
A postura social não está a caminhar para melhor. Presumo que quando ou se, eu lá chegar, enfrentarei o derradeiro passo de descredito na humanidade.
O teu texto é sentido.
Olá Meldevespas! São sempre tristes e dolorosas estas realidades das quais tentamos fugir a sete pés! É incomodativo, chocante e, repito, triste. Faz doer. E só alguém com amor para dar é capaz de encontrar algo com que se rir! Isso sim é bonito e especial. Fiz voluntariado num lar de idosos e todos os dias eu navegava com o Sr. Luís quando ele olhava pela a janela e me dizia "Estás a ver minha negrinha? Terra à vista!" E quando eu chegava a casa ainda contava ao pessoal por onde tinha navegado com o Sr. Luís... sim por entre riso e sorrisos e lágrimas também. Um grande beijinho para ti.
Pinguim: Verdade...hoje eles, amanhã nós. Qualquer um que entre ali não pode deixar de se sentir tocado. Beijinho e obrigada
Ginger: Podes crêr que quando te decidires a descer até ao Sul, "até te lembes!!" Beijo grande amiga
Teresa: Obrigada minha querida, e sim é isso mesmo, mas como se usa dizer cá por baixo "espera pela pancada!"~
Sinhã: Obrigada. Beijinho
Mary B.: Adorei essa comparação com as creches, realmente....nunca me tinhas ocorrido, mas é assim mesmo como dizes! Quem dera que todos nós, que trabalhamos uma vida inteira, pudessemos chegar a essas idades com um minimo de dignidade...mas sim, é uma utuopia.
Beijo Grande
João: A vida segue o seu rumo sempre, não interessa o que fique a doer lá atrás. Temos que aprender a viver com as nossas mágoas.
Beijinho grande pra ti
Shadow One: De facto é duro de ver, de perceber até. Um beijo e muito obrigada
Lala: è um misto de amor e dor ao mesmo tempo. Sentimos um carinho por aquelas estórias e se nos rimos, não é num tom jocoso, ou irónico, nada disso, afinal de contas estamos mesmo a rir-nos de nós próprios.
Beijinhos
Tenho um familiar, (tio) que está num lar de terceira idade! Infelizmente tenho falhado, porque me custam muito as visitas... isso doi-me!
Olha... Mel, a minha avó, que está agora com 90 anos ficou cega depois de uma operação às cataratas e depois de o meu avô morrer! Ela também morreu um bocadinho quando o perdeu, mas era uma moça toda geniqueira e por isso continuava a querer a sua casa, o seu pousio e uma alma com quem pudesse apenas trocar dois dedos de letra ao fim do dia... arranjámos uma empregada, que não fazia nada, uma outra, que a deixava sozinha e outra que gastava rios de dinheiro ao telefone com o namorado! Os filhos, estão todos longe... os netos também... e por fim, a única solução foi encontrar um lar para ela! De início foi difícil! Ela dizia que era agora um "passarinho na gaiola"! Eu chorei muito a primeira vez que a fui visitar lá... ainda choro quando me lembro que ela está lá... já lá vão quase 6 anos! Não gosto de lá ir, muito menos de imaginar que um dia posso acabar num sítio desses também... mas agora ela parece ser feliz lá... aparentemente... uma felicidade contida entre quatro paredes cheias de cuidados, onde tratam dos velhinhos, como se fossem bebés, com papas, cremes, fraldas... não gosto de falar disto, não gosto de imaginar que a velhice também tem este lado menos feliz... mas tem! E a única coisa que podemos fazer por eles é ouvir sempre as mesmas histórias como se fosse a primeira vez que as estão a contar... porque, no fundo, para eles, contá-las é vivê-las e sair dali, nem que seja por um segundo! Às vezes a vida tem coisas de merda... principalmente o final dela! Desculpa lá o testamento... Beijinhos e coragem!
Gostei muito deste teu texto, sabes. Raramente se fala da dor, do sentimento de impotência, dessa negação que falas, por incapacidade de admitir um luto precoce pelos familiares, do cansaço, impaciência, da depressão, do tempo dispendido, do trabalho físico exaustivo... e principalmente, da culpa... que fica e moi... também já passei por isso e vi passar quem não se adaptou tão bem à realidade... Um grande beijinho para ti
É a realidade, a dura realidade, aquela que não gosto nada. Se tu e a irmã não se rirem, vão chorar e não vão poder ajudar as pessoas que tanto precisam de vocês. Lindo trabalho que desenvolvem e que não seria capaz de o fazer. Para mim tem todo o valor. Parabéns pelo texto, parabéns pela coragem.
Antes de mais, avisar para o perigo de levar tal figura como a Ginger para qualquer lugar. Não é só o arroz que vai desaparecer... é também e, acima de tudo, a dignidade de um povo e de uma região.
Depois, a solução para os problemas enunciados, ao que parece, passa por haver e criar mais pessoas como as que escrevem estes textos. boa sorte.
E olha, se não sara... Sónia :)
Juana: Não é fácil ir a estes lugares. ali é o único sitio do mundo onde não precisas de cartomantes nenhuma pra te ler o futuro. É aquilo e está ali mesmo à tua frente. não tem que ser mau! Mas certamente tem que ser, ser!
Beijinho e obrigada
Silvia: Com o meu pai aconteceu o mesmo, começou tudo com a morte da minha mãe, e depois disso tem sido sempre a descer. Nós temos outro testemunho a dar, ele tem estado em casa até muito recentemente quando piorou, com uma empregada excepcional, que o incentivava, e o punha a "trabalhar" mesmo, andar, cozinhar, passear, hidro-ginástica, acompanhava-o pra todo o lado. Apenas chegou a um ponto que foi impossivel continuar assim, ela não tem poder fisico, e ele coitado ficou sem o mais importante, a noção das coisas. Testamenta sempre que quiseres. Beijinhos grandes
Eva: Concordo plenamente. É a dor da alma que é a pior dor. A dor da impotência de não poderes fazer nada mais, de saberes que a máxima "a vida continua" é verdadeira e ponto final. Um beijo e muito obrigada.
Olga:Não é bem um trabalho...ou uma obrigação. Se queres que te diga, claro que as visitas que faço ao meu pai me trazem paz, porque preciso de o ver, e mais, gosto de entrar naquele lugar. Há lá muitos velhos tristes, sózinhos, é certo, mas também há lá muitos velhos cheios de coisas pra contar, e que se animam com as visitas, mesmo que não sejam pra eles. Obrigada, beijinhos
Jóni: A Ginger até se "lembia!!!!" disso podes ter a certeza!
E obrigada, és um querido. Sou só uma filha, não penso que faça nada de mais, não achas?
Ultimamente, provavelmente até ando a fazer mal eheheh, tenho levado bolos todos os fins-de-semana prá malta da pesada! Bem sei que estão cheios de diabetes, mas como eles mesmo dizem, "olhe menina, quando morrer, vou dêtado!" e mai nada.
Ah é verdade....eu acho que Sara :D
Beijinhos
Odeio o som dos sinos
É a idade avançada quase esgotada...
carregados de dores, de perdas de memória ou de palavras e histórias repetidas como um gira-discos que não tem mais nada de novo.
Mas ainda há tempo para amores neste quadro da última idade... ainda há o carinho da família.
Mel, mais real não podia ser.
MZ:A verdade é que está tudo lá, uma vida inteira de recordações e dores e amores e desamores e tudo. Há que ser ouvinte, porque muitas vezes é tudo o que precisam que alguém os ouça. Beijinhos
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