sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Coisas de outros tempos



Dizem que à medida que vamos caminhando na idade, as memórias mais antigas vão ficando cada vez mais claras, em contrapartida com o esquecimento imediato do dia de ontem.

A propósito do tema proposto pela Fábrica para este mês, lembrei-me de uma longa viagem que fiz há séculos. Longa porque naqueles tempos, estaríamos nos finais dos 70, ir do Alentejo ao Algarve era uma aventura que demorava o seu tempo. Não havia auto-estradas, ou vias rápidas, e as estradas existentes a muito custo podiam ter esse nome. A Serra do Caldeirão era passagem obrigatória, curvas e mais curvas, seguidas de curvas eram a explicação para a cor esverdeada dos semblantes. Os estômagos mais frágeis, quase sempre pediam misericórdia e mesmo os mais fortes coravam de enjoo.

Era verão. Talvez Agosto, isso não sei dizer. Os meus pais, os meus tios, e outro casal amigo, decidiram ir fazer um fim de semana prolongado para o Algarve. Destino: Monte-Gordo, Tipo: campismo selvagem.

Selvagem, porque não havia propriamente um parque de campismo, e selvagem porque nunca ninguém daquelas três famílias tinha sequer olhado para uma tenda antes.

Lá seguimos viagem, três carros carregados de tralhas, comidas, fogões, colchões e etcs, por aí fora. Avistámos Monte Gordo, umas quatro horas depois. Os estômagos deviam estar às voltas, os miúdos fartos da viagem, os adultos fartos dos miúdos (sim porque estas coisas não mudam muito). Toca a tirar tudo pra fora do carro, e aos mais aventureiros cabia a tarefa de montar a tenda. A tenda, que era mais uma barraca, era um despojo de um qualquer quartel militar, um pano enorme, verde seco, surrado, esburacado, uma dúzia de estacas de ferro, e claro corda com fartura. Outras quatro horas depois, os filhos mais velhos rebolavam-se no chão às gargalhadas perante as tentativas frustradas de manter de pé a "casa". Nós os mais novos, andávamos mais entretidos a apanhar camaleões.

O casal amigo, com um filho único, tinham levado uma sobrinha com eles, pra fazer companhia ao primo, e depois de toda aquela azafama, estavam ainda em estado de choque com a viagem, os olhos perdidos, a tez pálida, e um cansaço enorme, que a bem dizer não conseguiram recuperar nos três dias que por lá andaram. O pobre do homem, nunca tinha conduzido fora de Reguengos, e, descobrimos mais tarde, dentro do carro deles, foi desde a partida estabelecido um estado de alerta constante. Ele só olhava em frente, a mulher só olhava para o lado direito, e no banco traseiro do automóvel, o miúdo (que mais parecia um leitão de engorda, e a quem "carinhosamente" chamávamos Bufinha), fazia a viagem toda de joelhos virado pra trás (naquele tempo não havia cá cintos de segurança, nem cadeirinhas), enquanto a prima, uma adolescente muito bem comportada, relatava tudo o que acontecia do lado esquerdo. Não admira que estivessem extenuados à chegada...

Foram três dias de divertimento, muito ar puro, muita praia, manhãs inteiras a enterrar os pés na areia da maré baixa para apanhar conquilhas. No Domingo depois de almoço, toca a desmontar o acampamento e enfiar tudo nos carros, para o regresso. Os nossos companheiros estavam já amarelos com a antevisão de mais um bocado de inferno até chegar ao doce lar.

Lá partimos, de regresso a casa, sujos, cheios de sal e pó, os miúdos cheiinhos de sorrisos, os adolescentes cheios de estórias pra contar amanhã no jardim, um fim de semana no Algarve não era pra toda a gente, os adultos já a pensarem na semana de trabalho que tinham pela frente.

Nas minhas mãos, uma caixa de papelão, com uma tampa toda furada com a ponta da navalha de bolso do meu pai. Lá dentro o Hércules, um camaleão.


Pic in Deviantart


PS: O Hercules, morreu dias depois. O meu vizinho matou-o à pazada, depois de ouvir a mulher e a sogra aos gritos de "mata o bicho! mata o bicho!"


11 comentários:

chica disse...

Impressionante como nos vem à mente tantas coisas.Adorei e pena que o Hercules teve esse final...beijos,linda participação,chica

Ginger disse...

Se o Hércules morreu, a culpa foi tua. «« Não tinhas nada que o tirar do atural habitat. -_-

As viagens para o Algarve eram uma tortura. :s Ainda me lembro e não tenho saudades nenhumas.

- Pai, ainda falta muito?
- É para lá daquele monte.
- E agora, ainda falta muito?
- É para lá daquele monte.
- E agora, ainda falta muito?
- É para lá daquele monte.
...

-.-'

Helena disse...

Pobre do Hércules! Linda lembrança.

João Roque disse...

Lindo.
Como os tempos mudam...

Tulipa Negra disse...

Oh, lembranças dos dias do campismo selvagem... Gostei muito, especialmente da descrição da viagem de carro do casal com o filho e a sobrinha.
Beijinhos

Eduardina disse...

Esta narrativa desenterrou em mim memórias de viagens de infância, com o tejadilho do carro carregado como saltimbancos, traquinices de quatro irmãos sempre em conflito uns com os outros.Ri-me com a aventura da montagem da tenda, tão semelhante a antigas vivências pessoais.Obrigada por esta viagem ao passado.

Johnny disse...

Todos conhecemos essas longas viagens....

(esta já foi mais fácil de identificar, mesmo sem a necessidade de colocar nada em orifícios estranhos)

meldevespas disse...

Jóni AHAHAH tive que "dormir" sobre este comentário pró compreender. ele há gente que tem a lingua muita comprida pá!
Mas prontoS, fico muito feliz que tenhas identificado o assunto desta vez (e nem foi preciso ler o que escrevi hein!)
Vá bêjo, e .... isso mesmo Jóni!

meldevespas disse...

Eduardina Olá e desde já obrigada pela visita. Especialmente quem tem familias grandes, tem este tipo de "bagagem" e estórias deste género pra contar, muita confusão pra preparar a saida pra férias, muita confusão na viagem, etc etc, e muitas saudades de tudo isso é verdade.
Beijo

luisa disse...

Gosto destas memórias. Mas coitado do Hércules. A dele, sim, é que foi a derradeira e mais longa viagem!

Lala disse...

eu gosto de "longas viagens". atiro um comprimido para o enjoo pela goela dentro e... durmo... mesmo até ao fim da viagem! Mas também gosto de selvajaria como esta que acabei de ler!! Adoro a natureza. Adoro acampar. Adoro a praia porque quanto mais rebolar na areia, melhor! Olha, eu sei lá!

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